Fé e Ciência

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Pensar o debate sobre a validade da fé ou da ciência é algo que, desde seus primeiros conflitos logo após o nascimento da ciência, tira a paz de muitos homens e mulheres ao redor do mundo.

A impressão que fica é a de que seria impossível abraçar as duas: ou você se torna um religioso fanático ou um cientista ateu[1] (ou pelo menos um cientista agnóstico[2]).

Embora seja uma rixa antiga, grande parte dos amantes da ciência, mesmo aqueles que não demonstram qualquer relacionamento com o cristianismo, identificam o papel da fé cristã como geradora e mantenedora do método científico no seu início.

Assim, gostaria de, nesse primeiro texto sobre fé e ciência, expor um pouco desse relacionamento entre elas. E, como é bem aceito historicamente que a ciência nasceu dentro da igreja, vou chamá-la de relação de filiação. Como em toda relação de filiação, é possível encontrarmos semelhanças e contraposições.

Acho interessante como a ideia de filhos rejeitando pais por se tornarem obsoletos serve também para explicar tantos paradigmas que nos remetem a pecados. Primeiro, Deus cria o homem e tudo ia bem até o homem acreditar que não precisava mais de Deus e buscar o conhecimento do bem e do mal para si. Mas não é só nessa primeira situação que vemos isso acontecer.

Não sei que tipo de pais você teve, ou mesmo que tipo de filho você foi, mas posso afirmar que essa mesma marca do pecado de Adão também habita o seu coração. E dessa forma, posso também lhe assegurar que desde que você começou a pensar por si mesmo, em diversas ocasiões acreditou ter superado seus pais, ou pelo menos desejou isso.

Perceba que até aqui não estamos falando de superar no sentido de ir mais longe, o que seria bem razoável, mas no sentido de intencionalmente se provar mais capaz que aquele que te criou.

Quando olhamos para a relação fé e ciência encontramos uma relação bem semelhante. Ao julgar o lugar onde a ciência nasce e seu progenitor, percebemos que a fé cristã e a igreja cristã constituem o ambiente perfeito para tal nascimento.

Embora exista essa relação tão íntima e próxima de origem, por definição, ambas se direcionam de maneira muito distintas[3]. De forma que enquanto a fé é definida como a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem[4]; a ciência é definida como um conjunto de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação e pesquisa[5].

Mas, se fé e ciência têm objetivos tão diferentes, como relacioná-las de uma maneira coerente?

Na tentativa de responder essa pergunta pretendo apresentar quatro modelos de relação entre fé e ciência: modelo de conflito, modelo de fusão, modelo de independência e modelo de diálogo. Então vamos juntos atravessar cada um deles!

O primeiro e mais comum dos quatro modelos é o modelo de conflito. Para esse modelo de relação entre fé e ciência, vemos pessoas que ao se tornarem adeptos de um dos lados, apresentam a extrema necessidade de repudiar por completo o outro lado. Ou fé, ou ciência. Nunca os dois.

Os adeptos de uma visão unicamente científica da vida, costumam amar esse modelo. Aproveitando para taxar de retrógrada e ultrapassada qualquer religião como modelo de vida. Para validar tal visão, costumam se agarrar a algumas questões históricas como “prova” de que ciência e religião sempre estiveram em conflito. Um dos exemplos mais amados para isso é o de Galileu Galilei. Galileu foi o grande defensor de que a terra girava ao redor do sol, enquanto a igreja daquele período defendia que o sol girava ao redor da terra (Provavelmente você já ouviu esse exemplo na escola). O grande problema aqui é o uso de um acontecimento histórico fora de seu contexto, com o claro objetivo de expor a igreja, representante da fé, como inimiga da ciência e seus avanços.

No entanto, o livro “Ciência e fé: Cartas de Galileu Sobre o Acordo do Sistema Copernicano com a Bíblia”,[6] reúne uma série de cartas do próprio Galileu Galilei onde não só ele defende sua fé cristã, como expõe a necessidade de estudarmos a Bíblia. Logo, ao contrário da falaciosa história contada, Galileu era comprovadamente um homem cristão, e sua história nos mostra que fé e ciência não precisam ser obrigatoriamente inimigas.

Assim como Galileu, muitos teólogos, ao longo da história, têm defendido a ideia de que Deus é o responsável por todas as coisas, inclusive a ciência. De maneira que um cristão deveria se esforçar para conhecer mais e melhor a Deus e a natureza. Alguns desses teólogos inclusive defendem que ao criar todas as coisas, Deus nos deu dois grandes livros. O primeiro livro, que provavelmente você já ouviu falar, é o livro que contém suas santas palavras, a Bíblia. O segundo livro, tão importante quanto o primeiro, é o “livro” da natureza, onde encontramos a natureza e a realidade[7] através da qual Deus também se comunica ativamente conosco. E, se existem duas formas de Deus se comunicar, como abraçar apenas uma delas e ignorar a outra? Logo, esse primeiro modelo se torna contraditório e insustentável.

O segundo modelo de relacionamento defende que fé e ciência devem ser vistas como duas faces de uma mesma moeda, como se fosse uma coisa só. De maneira que a ciência serviria como evidência da fé, e a fé funcionaria como um elemento norteador para a ciência.

Esse modelo tem levado determinados cristãos a olhar para evidências científicas com o objetivo de provar a existência de Deus ou qualquer acontecimento extraordinário da Bíblia, para assim validá-los. Um exemplo disso é o empenho de definir, através de evidências arqueológicas[8], que uma possível erupção vulcânica ao norte do Egito Antigo, no período da escravidão de Israel, justificaria o repentino deslocamento de pragas[9] e caos na direção do Egito. Assim estariam cientificamente explicadas as pragas ocorridas lá[10].

Outro exemplo desse segundo modelo seria um esforço de, através de regras gerais das ciências da natureza[11], tentar validar conceitos sistemáticos da bíblia como a própria trindade de Deus marcada na química[12] e na geometria[13].

O perigo dessa relação estaria no ciclo vicioso de provar a fé a partir da ciência. Como consequência, esse tipo de relação eventualmente pode acabar desrespeitando a fé ou a ciência apenas com a finalidade de manter certa conexão conveniente entre ambas. Assim, identificamos mais uma vez vínculo falho.

Se você realizar uma breve pesquisa, descobrirá que teorias científicas, tomadas como verdades absolutas em outros momentos históricos, já foram abandonadas devido a precisão de muitos métodos alcançados hoje. Então, com o avanço da ciência, esse tipo de relação se mostra cada vez mais enganosa. A nossa fé em um Deus trino não pode se limitar ao fato de existirem algumas características trinas na natureza, por exemplo, átomos compostos por prótons, nêutrons e elétrons. Pois, ainda que novas partículas atômicas sejam descobertas, isso não alterará a natureza trina de Deus.

É importante destacar que, assim como divergem em definição, fé e ciência também divergem em campo de atuação. A fé cristã, tal como revelada nas escrituras, se dispõe a ser prescritiva[14]. Em contrapartida, a ciência é descritiva[15]. Logo, nunca poderiam ser unidas ou mescladas como uma única coisa. Por isso, precisamos olhá-las como são, duas coisas distintas uma da outra, então o segundo método também não serve.

Essa distinção, no entanto, pode nos levar à tentativa de validação do terceiro método de relacionamento: independência completa entre as partes. Isso significa: ciência para um lado e fé para o outro. Sem que possam se comunicar ou se relacionar diretamente.

Embora muito tentador, esse modelo que parece facilitar a validação da fé e da ciência, nos leva em uma direção extremamente perigosa de concepção de mundo. Porque, uma vez que estabelecermos tais recortes, encontraremos áreas da vida que serão apenas de um desses domínios.

Defensor desse modelo, o famoso naturalista evolucionista ateu Richard Dawkins afirmou: “A fé é o grande pretexto, a grande desculpa para fugir da necessidade de pensar e avaliar evidências. Fé é convicção apesar de, ou talvez até por causa da, ausência de evidências”[16].

Esse tipo de perspectiva falaciosa evoca para si a necessidade de os cientistas serem imparciais quanto a quaisquer crenças e expressões de fé ao desenvolver ciência. E assim, qualquer pessoa “contaminada” por tais convicções estaria inapta a ser um(a) cientista.

Isso aconteceria porque, segundo os adeptos dessa perspectiva, as motivações de uma pessoa religiosa comprometeriam sua observação dos fatos (ou fenômenos) e consequentemente influenciaria nos seus resultados[17].

Por isso, a melhor opção para os defensores dessa perspectiva é que fé e ciência se tornem áreas incomunicáveis. De maneira que ciência e fé não poderiam ser associadas ou relacionadas de maneira nenhuma.

O que acaba ignorado nessa perspectiva é o fato de que apesar de fé e ciência apresentarem definições diferentes, enfoques diferentes e respostas diferentes para os mesmos fenômenos (ou fatos), tais respostas não precisam necessariamente ser excludentes.

Nesse quesito, podemos afirmar que a ciência teria o interesse de levantar hipóteses visando identificar a causa metodológica das coisas, enquanto a fé estaria mais interessada na motivação de tudo.[18]

Então, nem a ciência, nem a fé têm respostas exclusivas e completas para todas as coisas[19]. Logo, se abraçarmos apenas uma delas como meio para compreensão perfeita do mundo seremos incapazes de discernir entre causa e motivação de fatos ou fenômenos.

Chegamos a última forma de relacionar fé e ciência: Modelo do diálogo ou da complementaridade. Se entendermos que a ciência visa explorar as causas a partir de explicações cientificas mensuráveis, e a fé visa identificar motivações, isto é, explicações pessoais e religiosas, vemos que ambas estão igualmente comprometidas a responder as diferentes questões da vida.

Ambas se propõem a dar explicações para grande parte dos fenômenos. Mas, a esmagadora maioria das vezes, serão explicações diferentes (o que não significa que são excludentes).  Isso nos leva a pensar que se pretendemos compreender melhor todas as coisas, precisaremos de mais dados para lidar com os fenômenos do dia a dia. Ou seja, é preciso identificar maneiras de, entendendo as particularidades de cada uma, explicar os fenômenos, fatos e a própria vida.

A Confissão de Fé Belga[20] tem uma forma muito preciosa de lidar com isso, sistematizando o que foi apresentado e defendido pelo apóstolo Paulo na carta aos romanos. Ela vai nos apresentar o conceito anteriormente citado de dois livros[21] de expressão de Deus: o livro da natureza e o livro das palavras.

No livro da natureza estaria toda a criação e cada fenômeno natural existente e ocorrido onde Deus se revela a todos os homens. Já no livro das palavras, a Bíblia, vemos a palavra de Deus revelada de maneira clara e específica. Nesse sentido, podemos nos aproximar da perspectiva de complementariedade de fé e ciência a partir da necessidade de compreender ambas as formas de como Deus se revela a nós.

O próprio Deus decidiu se revelar desses dois aspectos e nos adverte da importância de buscarmos conhecê-lo mais e melhor. Logo, ao contrário das demais perspectivas (ricas de naturalismo exacerbado), nós, cristãos, temos todos os motivos não só para buscar conhecer a Deus mais e melhor em sua palavra, como também somos desafiados a nos especializar a cada dia mais no conhecimento cientifico para reconhecer as profundidades evidentes de Deus na natureza.

Diante de nós permanece o desafio de nos relacionarmos com ambos, sempre em uma posição de submissão e adoração a Deus. Seja o melhor cristão possível. E, a partir de hoje, o melhor cientista que você puder!


[1] Alguém que nega a existência de Deus.

[2] Alguém que afirma que é impossível provar a existência ou não de Deus (ou deuses). 

[3] O canal do Youtube “Cristãos na ciência” desenvolveu uma série de vídeos só sobre esse assunto com o pastor, filósofo e professor Pedro Dulci. Vale a pena dar uma conferida: https://www.youtube.com/watch?v=yMhotMz8Kt4

[4] Hebreus 11.1, Bíblia Sagrada, Versão Revista e Atualizada.

[5] Oxford Languages.

[6] GALILEI, Galileu. Ciência e Fé. 2ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

[7] “Nós o conhecemos por dois meios. Primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar “os atributos invisíveis e Deus”, isto é, “O seu eterno poder e a sua divindade”. Segundo: Deus se fez conhecer, ainda mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina palavra, isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que lhe pertencem.” – Confissão de Fé Belga, 1561.  

[8] O canal History Channel desenvolveu um episódio apresentando as explicações científicas das 10 pragas do Egito Antigo: https://www.youtube.com/watch?v=WzLbpyPlw7o 

[9] Águas transformadas em sangue; infestações de: rãs, piolhos, moscas; morte dos animais; doenças de pele; chuva de pedras; nuvem de gafanhotos; escuridão completa; e morte dos primogênitos egípcios.   

[10] Êxodo capítulos 7 ao 11, Bíblia Sagrada.

[11] O irmão em cristo e mestre em física Adauto Lourenço é um defensor dessa perspectiva.  Para mais detalhes, vale a pena assistir essa pregação dele no YouTube, onde expõe os seus fundamentos: https://www.youtube.com/watch?v=2-UfAgRjEwQ

[12] Deus e os átomos são três: Prótons, nêutrons e elétrons.

[13] Deus e as direções são três: altura, largura e profundidade.

[14] Ela revela a maneira como Deus se revela a nós e como ele espera que vivamos no mundo.

[15] Ela descreve a dinâmica do acontecimento de fenômenos e as organiza em fatos, hipóteses e teorias.

[16] DAWKINS, Richard. Deus, Um Delírio. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007.

[17] PEARCEY, Nancy. Em busca da verdade. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.

[18] Um exemplo dado pelo Pastor Pedro Lucas Dulci é o da chaleira apitando após ser aquecida. O cientista diria que a chaleira está apitando devido a agitação das moléculas de água que passaram do estado líquido para o estado gasoso a partir do aquecimento da água dentro da chaleira (Resposta científica). Já o religioso poderia dizer que a chaleira está apitando devido ao meu interesse em tomar um chá. O que me levou a esquentar a água (Resposta pessoal). São duas respostas certas para o mesmo evento.    

[19] No sentido de que a fé não nos habilita a operar uma pessoa enferma, assim com a ciência não consegue trazer paz e consolo a uma pessoa desenganada pela medicina.   

[20] Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/confissao_belga.htm

[21] Confissão Belga, Artigo 2: Como conhecemos a Deus:

Nós O conhecemos por dois meios. Primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso [1], em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar “os atributos invisíveis de Deus”, isto é, “o seu eterno poder e a sua divindade”, como diz o apóstolo Paulo (Romanos 1:20. Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis. Segundo: Deus se fez conhecer, ainda mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina Palavra [2], isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que Lhe pertencem.

 

1 Comment

  1. PAULO DE TARSO BRITO DE SOUZA IPB disse:

    Muito bom texto de fé e ciências

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